quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

CAPÍTULO 1

Os cabelos negros curtos, agora já com fios grisalhos, voavam em seu rosto, tampando parcialmente sua visão.   Os olhos claríssimos, já fatigados com o tempo estavam molhados. Talvez molhados demais. Os anos passaram tão rápido...pareciam fugir. E todas as lembranças estavam abertas como um livro à sua frente, pedindo para serem lidas e relidas pela protagonista que estava ali parada, estável. Havia chego ali algumas horas atrás para estar presente no fruto de tantas discussões familiares. É tão fácil, pensou, apenas concluir que o tempo passou e fingir que nada mudou. Como se isso não acontecesse a cada instante. A poeira incomodava a visão e a irritava profundamente, o barulho das máquinas começando a serem aquecidas era ensurdecedor, mas estar ali era como uma missão a ser cumprida.
Já haviam passado muitos anos desde que a pintura daquelas casas estava intacta, desde que o cenário era realmente uma paisagem bela e o ar não a incomodava da maneira como agora fazia. Ela já não era mais aquela garotinha inquieta de cinco anos. Já era uma mulher transformada pelo mundo e pela história, feita de suas próprias decisões. Cada vez mais os barulhos a faziam fechar os olhos e lembrar. Lembrar de como costumava adorar o cheiro que tinha aquela vila.  O dia estava cinza, o que combinava exatamente com o turbilhão de coisas que Anita Bertagnoli sentia. Ela queria voltar. Voltar não para concertar, não para mudar, mas sim para refazer... Simplesmente para ter mais tempo. E assim ficava a encarar aquela destruição. Vendo sua vida se tornar ruínas.
Junto com o vento forte, seu coração acelerava e o barulho das máquinas grandes e pesadas se aproximava da sua memória. Era óbvio que aquele lugar não duraria para sempre, relembrou a si mesma, e assim piscou fortemente os olhos para lembrar-se também de que não tinha mais quinze anos e já havia superado coisas piores que aquilo. Ou pelo menos assim pensava. Mas aquela atmosfera, aquelas casas esperando para se tornarem ruínas levavam Anita a lugares que ela pensara já ter esquecido.
 - Sra. Bertagnoli? – Um homem jovem, alto que usava um capacete grande demais para sua proporção a tirou forçadamente daqueles devaneios. E ela agradeceu por isso. 
- Desculpe, sim?
- Nós vamos começar. A senhora tem certeza de que não quer entrar na sala de apoio? O barulho aqui fica realmente muito alto, e esse pó não faz bem a ninguém. – Ela sorriu gentilmente em resposta a ele, agradecendo a preocupação. 
- Muito obrigada, mas prefiro assistir. É uma etapa pela qual preciso passar se é que me entende. – E sorriu mais ainda, procurando ser o mais amigável possível.
 - Entendo sim senhora. Bom, então começaremos agora mesmo. – O jovem fez um sinal para o homem sentado em cima da máquina gigante, que destruiria todo aquele pedaço de terra.
E logo um estrondo começou e a atingiu de tal forma, que a lágrima que estava encurralada a algum tempo, quase teimou em sair de novo.

Talvez o rapaz estivesse certo e ficar ali realmente não era uma boa idéia. Mas Anita sabia muito bem que se não assistisse tudo até o final, se enganaria com pensamentos bobos e acabaria se magoando ainda mais. Acabaria um dia dirigindo até a vila e encontrando ruínas, sem saber da onde tinham vindo. Ela colocou os fios que saltavam ao rosto atrás da orelha em um gesto imediatista. O vento estava perturbante, o que levava a poeira aos olhos com mais força e impacto. Os barulhos continuavam e as paredes se desfaziam como se fossem feitas de areia. Ela só pensava em como havia sido feliz dentro daquelas paredes. Era uma vila tão pequena, tão aconchegante, que fez sua vida se tornar especial de um jeito único. Os momentos dentro daquele castelo de areia moldaram a mulher que era hoje e as rugas em suas mãos estavam ali para lhe provar isso. Finalmente a lágrima escondida saiu pelo canto do olho, o que fez Anita levar um susto e instintivamente secá-la do rosto.


Dirigiu cegamente até em casa. Sua cabeça latejava com tamanha força, que o barulho das máquinas ainda se fazia presente. Apenas pensava em sua cama branca... Branca como o vazio que queria colocar na cabeça. A noite estava caindo e a garoa misturada com o vento dava uma sensação de frio e solidão. A casa estava vazia. Grande, gelada e vazia. As fotos nas paredes não mentiam. E a cada passo mostravam o quanto sentia falta de tudo aquilo. Será que o seu maior medo finalmente havia se tornado realidade? Rapidamente ela piscou pesadamente se forçando a esquecer isso. Seria injusto com ela mesma pensar dessa maneira. A vida havia sorrido muito para ela, mas ainda assim, a saudade era incalculável. Talvez fossem os acontecimentos do dia que a haviam deixado assim. Anita foi direto para a cama após lavar o rosto com água quente. O corredor parecia cada vez maior e a cama cada vez mais longe. A lembrança do dia pesava ainda muito.  Recostou a cabeça no travesseiro e pensou na mãe. Ah, se ela soubesse o quanto os irmãos haviam brigado por aquele pedaço de terra. Por aquela casinha tão pequena, na vilinha tão pequena, que aparentemente não significava nada. Acho que brigavam por puro medo, Anita pensou. Medo de ter que abrir mão do passado. Mas a mãe teria dado um jeito nisso. 

São Paulo era uma cidade para poucos. Seu crescimento atropela as pessoas, o que acaba gerando uma seleção natural. É, nem metade da família agüentou essa seleção. Agora ela estava sozinha e jurava não ligar para qual seria o fim mais lucrativo para os escombros. Afastou todos esses pensamentos. Sabia que não conseguiria dormir pensando nisso. Então simplesmente apagou as luzes e se afundou nas cobertas, se sentindo mais sozinha na cama imensa, imensa e cada vez mais imensa. Olhou para o travesseiro ao lado e concluiu repetidamente que sentia falta de muitas coisas. E pensou uma última vez antes de fechar os olhos: o tempo passa.
                                                                   








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